Eu associo muita coisa com música
Mas isso foi só um pontapé pra esses pensamentos todos.
Teve uma bifurcação na linha do tempo naquele momento ali. Foi bem no momento que a gente terminou de cantar Minha Pequena Eva naquele carnaval. Estávamos todos tão felizes... Batendo palmas, todos juntos.
♪ Me abraça pelo espaço de um instante (Eva)
Me cobre com teu corpo e me dá
A força pra viver ♫
Tenho certeza de que foi na última palma. Nos beijamos, o nosso amor na última astronave. Aí, entramos em outra dimensão.
Num momento era terça-feira de carnaval (25 de fevereiro) e no outro era quarta-feira de cinzas, bem cinza (26 de fevereiro, primeiro caso confirmado em São Paulo). Mas ainda levou um tempo pra ficha cair, pra coisa ser levada mais a sério, pras ruas ficarem parecidas com o início de The Walking Dead. A pandemia foi declarada em 11 de março. E em 20 de abril, lockdown. Hygor entrou em home office, eu não. Deixamos de nos ver. Pelo menos um de nós estaria seguro.
Muita gente achou que duraria 15 dias. Já eu, disse a ele, triste: a gente só vai se ver lá pra setembro. Errei por pouco mais de um mês (que bom). Nos reencontramos no dia 30/07 e eu o declarei meu namorado. Nosso primeiro dia dos namorados, foi sem namorar oficialmente, mas foi um dos mais marcantes. Ele me deu uma caixinha de música. Você gira a manivela e toca a abertura de Sailor Moon. Foi a música que eu escolhi pra entrar no nosso casamento, 3 anos e 4 meses depois.
Sinto falta de um livro falando sobre aquele primeiro ano. Eu não sei, talvez uma necessidade de enxergar por fora. De olhar por fora e gravar na mente que houve um desfecho. Que acabou. Mas que está tudo documentado. Não foi mentira, não foi ilusão, nem exagero. Aconteceu, infelizmente aconteceu. Sei que tem documentários, notícias, relatos isolados, mas queria algo mais concreto e palpável, sabe? Conhece algo assim? Acho que é porque eu sabia na época que estávamos vendo em tempo real a História se construir. Ela se constrói a cada momento, é claro, mas aquele período foi mais notável, dava pra tocar.
Eu tive tanto medo… Eu via todos os dias o hospital que foi aberto ao lado do trabalho. Uma vez, me atrevi a olhar pela janela. Pela janela do quinto andar, eu vi aquela família recebendo a notícia, fazendo o reconhecimento por foto e o carro saindo com o corpo pouco depois. Sem direito de despedida, além daquela reles foto de um ente querido já sem alma... O desespero baixinho escorrendo pela calçada. Depois disso, passei meses sem olhar pela janela. Lembro dos hábitos que mudaram, dos inencontros, das comidas que não comi por medo de contaminação, dos abraços que não dei, das brigas, de ter me apegado a um livro que me trazia paz, O Jardim Secreto (hoje, um dos meus favoritos).
Talvez eu mesma devesse escrever o que me lembro de mim antes de ler qualquer outra memória. Mas aí seria uma versão bem incompleta, porque houve um tempo que eu parei de acompanhar as notícias pra não enlouquecer de vez. Não era seguro enlouquecer, entende? Também não quero mergulhar nesse nível tão pessoal. Talvez esteja muito recente para todos. Quanto tempo leva pra escrever sobre uma tragédia dessa dimensão? A história acontece em tempo real e é documentada em jornais. Mas quem faz a seleção do todo depois, tendo vivido e aos poucos morrido nessa convivência com a morte? Será que Daniela Arbex vai escrever sobre isso um dia?
Mês passado eu estava ouvindo Melim, que tocou na rádio de Gilsons no Spotify. E Melim sempre me lembra Tati, que é uma das pessoas mais doces que já conheci. Lembrei do nosso tempo juntas no trabalho nesse período. No primeiro ano de pandemia, foi uma das pessoas com quem mais convivi. Muitas horas de nós duas naquela sala extremamente branca do quinto andar, separadas por uma baia de distância, por “segurança”. Lembro de como ela tinha medo de tudo, assim como eu, e de que as vezes chorava escondida, assim como eu, e que eu tentava cuidar dela de levinho. Conversando, mandando sair da janela pra não ficar ansiosa, incentivando que ela namorasse sim com um rapaz que tinha conhecido pouquinho antes de tudo começar a se acabar. ♪ Toda a Terra reduzida a nada, nada mais ♫ Estão juntos até hoje. E parecem felizes desde sempre.
Enquanto isso, eu mesma também tentava cuidar de mim, porque por mais que outros tentassem, eu passava 24h comigo mesma em minha própria cabeça. Meu humor mudou bastante e eu comecei um diário pra não perturbar tanto os outros. Como eu ficava estressada com quem não tomava os cuidados que eu julgava necessário seguir à risca… Como eu temia precisar de hospital quando adoeci, de que me dessem remédios que piorassem minha situação, e o quanto temia pelo fato de que mainha estava exposta todos os dias em um supermercado. Quanto chorei e arenguei por causa dos meus e do quanto alguns deles, alienados por um presidente, se arriscaram, colocaram outros em risco, debocharam de vidas perdidas. Negaram a lógica e dançaram com a morte.
Passou. Já podemos voltar a respirar fundo. Literalmente. Seja pra nos sentirmos vivos ou pra amenizar a resposta que vamos dar a alguém que ainda defende quem governou nesse período. E acho mesmo que nem teria sido esse escarcéu sem a pandemia. Teria sido o ruim normal "eita, tá tudo caro, daqui a pouco vamos ter que comer miojo" (não é piada, é bem triste).

De vez em quando eu lembro. Como se fossem aqueles flashes aparentemente desconectados de quando a gente acorda depois de ter sonhado "a noite toda" e não lembra mais da história de forma linear, a não ser que pense bem sobre eles. Vovô Miguel se foi, eu li O Jardim Secreto, comecei meu diário, desenvolvi uma ansiedade muito ruim, comecei a namorar com Hygor, tive muitas espinhas, chorei rios, familiares me decepcionaram muito, briguei com alguns deles nas eleições seguintes, até bloqueei alguns. É esse looping. Mas no Natal já estava tudo bem. Respiramos fundo, nos abraçamos todos, os que brigaram e os que não brigaram. Os da família. Os outros, deixei pra lá mesmo. Estudei muito, entrei num modo de sobrevivência vendo todas as demissões, eu tinha que trabalhar em um lugar melhor e mais seguro. Estou nele até hoje.
É… hoje vejo que se não fossem todas as mortes o mundo estaria normal. Teríamos seguido na mesma linha do tempo de antes. Assim como era na época FHC, ou na época Lula. Não era ótimo, mas era normal. Não teria essa diáspora dentro de uma mesma família, só as discussões normais que também se resolvem no Natal, que a gente finge que nem existiram. Briga? Que briga? Bora comer salpicão. O antigo normal. As diferenças seriam normais, equilibradas, saudáveis, sem rompantes e rompimentos. Leves e normais. Sem um "novo" normal. Só normal.
"Existe uma teoria que diz que, se um dia alguém descobrir exatamente para que serve o Universo e por que ele está aqui, ele desaparecerá instantaneamente e será substituído por algo ainda mais estranho e inexplicável. Existe uma segunda teoria que diz que isso já aconteceu." Douglas Adams
O que você acha? Como tá sua impressão hoje? Quais são suas lembranças recorrentes? Se é que alguém chegou até aqui... rs acho que o substack é mais good vibes, e eu devo ter pesado o clima. Mas não estou pesada, estou leve. É que me sinto segura pra pensar e falar sobre isso agora, já me sinto normal de novo, até feliz, me sinto eu, na medida do possível, e sem muito medo de me sentir assim.

Texto lindo, obrigada por ter trazido um Zé gotículas pra cá
Tu escreve bem demaais