Vi um vídeo do viajante escritor, no qual ele fala sobre as histórias que os nossos objetos carregam e lembrei de uma coisa: quando eu era criança e alguém morria na família, era costume cada parente mais próximo ficar com um objeto de recordação da pessoa falecida. Um objeto que abrigaria a lembrança daquela pessoa pra sempre, como se fosse um pedacinho dela. Se tivesse sorte, você teria algo que a própria pessoa te deu em vida. Do contrário, era isso, algo que te lembraria dela pro resto da vida, porque novas memórias não seriam construídas. Eu fiquei com o rádio de vovô Antônio, embora eu já tivesse um par de bonecos que ele me deu (o Gordo e o Magro). De vovô Minervino fiquei só com um bonequinho feito de pompom, que ele me deu em vida. De vovó Severina tenho um globinho de Natal. Do meu primo, só uma foto.
E se fosse eu? Que objetos alguém guardaria? Talvez minha Sailor Moon motoqueira e minha miniatura da casa de Beetlejuice. Talvez algum brinco ou peça de roupa que eu use muito. Algum desenho que eu tenha pintado. Acho que Hygor ficaria com alguma coisa que me deu. A caixinha de música ou o prato de Peter Rabbit... Com certeza com nosso vaso de areias. Mainha ia querer meus desenhos. Mas, tirando Hygor e mainha, não sei se alguém me observou o suficiente pra reparar nesses objetos que me lembrariam postumamente. Eu acho que não. E, olhando meus amigos e familiares, acho que eu não consigo identificar um objeto marcante da maioria deles, nada que tivesse a aura tão forte quanto o rádio que meu avô ouvia todos os dias.

Pode ter a ver com nossa idade, nossa geração, ou com o fato de que hoje tá tudo no celular e a gente fica agarrado com essa bosta como se fosse as tesouras de Edward. O consumismo e a produtividade foram matando a significância das coisas. Relógios perderam a personalidade, agora são mini telas pretas conectadas ao punho, bem pertinho das tesouras, que é pra monitorar nosso corpo. Dá nem pra espiar que horas são no braço de um estranho quando você tá sem o seu e não tá a fim de perguntar... Nenhuma pulseira colorida ou visor sisudo que fale algo sobre a personalidade da pessoa.
Mas...... Ainda temos uma coisa: as fotos. (temos? rs) Perdi muitas de algumas fases da vida. Tem gente que diz que papel não é seguro, seguro é digital. Em algumas situações, eu concordo demais. Mas olha, eu tenho fotos impressas de antes de eu nascer... Tenho pouquíssimas da minha adolescência, e também de algumas viagens. É que chegou o digital e "nuvem" não era tão comum. E nessa de tirar foto digital que nunca foi impressa, perdi um monte na tal "mídia física" (vulgo CD, porque esses troços aparentemente tem data de validade). Também se foram algumas em HDs de computadores que se quebraram bem aí, e nos famigerados HDs externos. “Arquivos corrompidos”. Triste. Resta a memória, eterna enquanto durar.
No começo do ano, eu trouxe os álbuns da minha vida que estavam na casa de mainha. E cada página de álbum virada foi um portal pra várias histórias. Memória não é sobre ficar com nostalgia e aquela saudade penosa, tentando ser de novo a mesma pessoa que foi um dia. É ver, lembrar e saber que alguma coisa da vida valeu a pena (satisfação, felicidade, afeto, plenitude), sem necessariamente querer viver aquilo de novo (frustração, dor, ressentimento por não conseguir viver a mesma coisa de novo). Consegue distinguir? 🤭

Debemos tirar más fotos, afinal hoje não temos mais um filme de 36 poses, que tinha que durar um ano inteiro ou mais. Temos, por baixo, 256gb de memória. Mas também precisamos preservar a memória humana. Tudo bem 36 fotos em um dia, mas que tal selecionar uma pra imprimir? Temos mesmo que “viver o momento”, como dizem por aí, mas não custa nada ter algo pra recordar depois. "Revelar", porque depois é ela que vai ser revisitada. É ela que vai evocar a lembrança do dia. Sem depender de bilionários de redes sociais pra te mostrar o que aconteceu. Porque não importa tanto saber que "foi há exatamente 2 anos" e sim o que representou aquele momento. O que viveu, o que comeu, o que viu e sentiu, se estava confortável, se algo mudou entre as pessoas retratadas, o que se passou naquele dia, se tava pensando no trabalho do dia seguinte, se estava com pressa pra ir embora, se já estava indo embora mesmo, mas com pena porque queria ter ficado mais.
Se queremos preservar memórias, precisamos, sobretudo, fazer registros mais intencionais, igual quando a gente tinha um filme de 36 poses. Às vezes, a gente nem lembrava mais o que tinha fotografado, mas quando recebia o envelope, torcendo para que nenhuma foto tivesse queimado, era sempre gostoso relembrar o significado de cada uma. Ali a memória não era só um estático de selfie, e sim uma introdução pra contar uma história que a gente gosta de lembrar. É sobre ter uma memória guardada de momentos que constituem uma fase da sua vida. E até quando está tudo revolto, pensar “hoje não tá nada bom, mas eu já tive uns dias massa nessa minha passagem pelo espaço-tempo da vida. Foi tão bom que até tirei uma foto, olha!”.
Coisas dos outros
Vídeo do
que mencionei lá no início:
O instagram @pequenoarquivodocarnaval: “Um resgate de fotografias vernaculares que celebram o Carnaval, e os carnavais da vida. Memória, afeto e rebuliço o ano inteiro. Por @euandredavila.” (mas no momento, tá relembrando São João)
Esse podcast da Sachie Murasawa que descobri dia desses (em espanhol):
Essas newsletters:
E esses dois links, que tem tudo a ver com memória, de um jeito nada poético:
Eu iria querer um chapeuzinho de bruxa (na minha imaginação, vc tem vários). Que bom que você resolveu escrever (e publicar) 🖤
Essa tua reflexão me lembrou de quando eu comecei a encarar o passado como uma fonte de conhecimento, não um lugar que eu tinha de evitar pra não ficar preso em espirais de angústia, arrependimento e "e se?"